Quem brinca com o menino?
ilustração de Línea @lineaaa_
“Menino é brinquedo do diabo”, é desse jeito que o povo fala, né?
Pedrinho é outro! Todo dia inventava uma coisa nova pra aprontar e sempre saia ileso.
Ah! Quase ia me esquecendo daquela vez que ele inventou de descer o morro de areia com um carrinho de rolimã, acabou rolando ladeira abaixo e ralou o joelho de um jeito muito feio. Mas se você parar pra pensar em tudo que ele já fez, isso daí não foi nada.
Eu desconfio que não é o diabo que brinca com o menino. Acho que é outra coisa…
“Criança vê coisa onde não tem”, essa foi uma mulher bem azeda que falou, mas eu acho que é mentira. O adulto é que não consegue ver mais nada.
A Mariazinha mesmo, vê tudo quanto é coisa porque ela tem os dois olhos mais grandes do mundo. No começo quando via ela contava pra gente grande, mas como ninguém nunca deu ouvidos pra ela, agora quando vê se cala, se encolhe toda e fica choramingando pelos cantos.
É a Mariazinha a pessoa que o Pedrinho mais gosta de atormentar porque só ela é que presta mais atenção nele, com aqueles olhos enormes. Do mesmo jeito é o Pedrinho pra Mariazinha, que é o único que escuta o que ela vê. E se tem uma coisa que ele gosta é aprontar tudo em quanto com o juízo dela e depois ouvir as histórias que ela conta.
Foi por isso que numa noite de segunda-feira, quando todas as crianças estavam na porta de casa brincando de tacobol*, Pedrinho pulou o muro de casa com uma caixa de fósforos em uma mão e um monte de palha de aço na outra e gritou bem alto:
“Quem quer ver o fogo de artifíço?”, desse jeitinho mesmo.
Aí só se ouvia as crianças da rua gritando animadas e logo formaram uma roda pra ver o tal do fogo de artifício do Pedrinho. Mariazinha, que era a menor entre todos, se enfiou no meio do povo e foi passando até achar uma brecha para conseguir ver o menino e sua danação do dia.
Foi com um sorriso bem grande no rosto que ele esticou a palha, abriu a caixa de fósforos, riscou um palito na caixa e, numa rapidez impressionante, queimou a ponta da palha e logo a girava a toda velocidade.
Faíscas voavam para todo lado e o brilho intenso que saía da palha iluminava a rua, onde agora os gritos de algumas crianças eram de susto, e alguns mais novos até fugiam aos berros. Ainda assim, nem o medo de se queimar afastou todas as crianças, a maioria permanecendo ali, vidrada na cena.
Foi bem no momento em que Pedrinho jogou a cabeça para trás e riu de quem fugia dele, que Mariazinha viu. Os olhos dela aumentavam de tamanho à medida que ia vendo mais e mais e o coração batia acelerado no peito, mas já não tinha medo. Por trás da chama da palha acesa e do círculo brilhante e quente que ela formava, ali mesmo, atrás do corpo do menino, surgia uma sombra alta de um homem. Além da sombra, a menina só conseguia ver um chapéu metade vermelho e metade preto e uma boca enorme, bem aberta em um sorriso.
Criança vê mesmo é tudo, e foi justamente por ver tudo que ela soube naquele dia… Não é o diabo que brinca com o menino, afinal.
Laroyê Exu, senhor dos caminhos, da comunicação e da minha vida.
*Tacobol= Taco ou bola, jogo que costumava brincar em minha infância nas ruas do Monte Verde, um bairro marginalizado da minha cidade, Teresina-Pi. O jogo consistia em dois grupos que ficavam ora com os tacos, ora com a bola, tentando derrubar latas um do outro e ver quem fazia mais pontos.
EXU: Na mitologia Yoruba Exu é o Orixá mensageiro, senhor dos caminhos, da comunicação e do princípio, sem Exu nada acontece. No período de colonização do Brasil Exu foi sincretizado erroneamente de forma a acabar com seu culto, como o diabo cristão, devido a sua forma brincalhona, e seu jeito único de ensinar que não existe o bem e o mal da maneira que aprendemos. Como sendo senhor do movimento e orixá protetor, acredito que é a partir dele que devemos ensinar nossos jovens brasileiros que os Orixás não são o que os colonizadores nos disseram. É ele que está conosco quando nos sentimos sozinhos e incompreendidos. Exu não é o diabo. Exu é quem abre caminhos nas nossas vidas desde jovens, e à ele devemos respeitar.
Laroyê Exu!
