O seguinte texto é a resposta a um desafio que recebi enquanto frequentava a cadeira de Escrita Criativa na universidade. Para um melhor entendimento do mesmo, segue uma transcrição do briefing enviado pelo professor responsável:
 
 
Desafio:
"A minha ideia é propor-vos que façam um texto com cerca de duas páginas sobre uma palavra à vossa escolha. O tema do texto será esse: escolhem uma palavra e escrevem sobre ela. Só não vale escrever poesia; de resto podem optar pelo registo que quiserem. Deixo-vos só uma sugestão: evitem aquelas palavras sobre as quais não há nada de interessante para dizer (amor, amizade, liberdade, etc.) e optem por coisas menos óbvias (gravata, curva, tremoço, lesma, mesóclise, epanadiplose...), ou então, pelo menos, abordem a coisa de um ângulo mais criativo. E, por favor, aquilo da mesóclise não era a sério. A epanadiplose é que era."
 
 
 
E agora, o texto que redigi:
 
 
 
Interrogação?
 
Porque não? Não é uma palavra tão válida como todas as outras? Ou estaremos nós perante alguma espécie de preconceito lexical? Se assim for, que palavra escolheriam vocês se estivessem na minha posição? Amor? Amizade? Liberdade? Acreditam mesmo na possibilidade de ainda existir algo de interesse a dizer em relação a isso? Não acham que essas são palavras com um significado já gasto de tão utilizado? E por que razão seriam essas, melhores palavras? Será que é por terem uma conotação positiva? Mas o professor pediu-nos que escrevêssemos um texto acerca de uma palavra com uma conotação positiva? Ou pediu-nos que escrevêssemos um texto sobre uma palavra à nossa escolha? Terei sido eu que percebi mal?
 
Se não gostam da palavra que escolhi, o que acham de mesóclise? Seria uma escolha mais apropriada? Não? Mas sabem ao menos o que é a mesóclise? Não? Então qual é o motivo dessa rejeição quase imediata? É por não soar bem? É por se parecer com um nome de doença?
 
Então e que tal epanadiplose? Já está melhor? Também não?! Não acham que é uma palavra cujo significado é infinitamente mais interessante do que o de qualquer outra? Lembram-se que foi uma das palavras sugeridas pelo professor, certo? E por acaso já pararam para pensar por que razão terá o nosso estimado professor sugerido tal palavra? Terá sido uma espécie de humor que passou ao lado de muitos de vós? Ou existirão razões mais fortes que nos escapam a nós, meros mortais que vergonhosamente não dominamos a nossa própria língua materna? Inclino-me mais para esta última hipótese, perguntando-me se serei o único?
 
E agora perguntam vocês, por que razão não escolhi então falar acerca da epanadiplose, visto que a defendo tanto? Ou, o que me motivou a escolher a palavra interrogação? Querem uma resposta? Uma resposta simples o suficiente para que qualquer um de vocês consiga perceber, por muito pouco volumosa que seja a vossa massa encefálica? Lembram-se do modo como comecei o texto? “Porque não?”
 
Para aqueles que pensam que eu preciso de um motivo mais forte para justificar a minha escolha, pergunto-vos o que vos faz achar na posse do direito de pôr em causa as minhas escolhas criativas? Terei bebido assim tanto na noite passada ao ponto de vos enviar um e-mail no qual pedia a vossa sábia opinião acerca da palavra que escolhi? Ainda não perceberam que a vossa opinião é a última coisa com a qual me importo?
 
Acham que estou a ser um pouco rude? Acham que devo um pedido de desculpas? Então e que tal se, em vez disso, eu vos compensasse de algum modo? E se eu vos explicasse com mais calma a importância das interrogações?
 
Já imaginaram como seria um mundo sem interrogações? Como é que as pessoas fariam perguntas? E como é que dariam respostas? Afinal de contas, as respostas surgem como consequência das perguntas, certo? Seria possível a existência da comunicação tal como a conhecemos? Será que continuaríamos a viver do mesmo modo? Seriam as nossas preocupações as mesmas?
 
Como seria a nível de questões existenciais, por exemplo?
De onde viemos? Quem somos? O que fazemos aqui? Para onde vamos?
Sem poderem formular estas e outras questões, como se entreteriam os grandes filósofos da Antiguidade?
 
O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê?
Seríamos alguma vez capazes de definir um lead de uma notícia de um modo tão sucinto como este?
 
Então e as nossas inúmeras conversas banais que temos ao longo do dia?
Como está? Passou bem? A sua avó já recuperou da entorse que sofreu durante as finais do campeonato nacional de jiu-jitsu? Viu ontem as notícias? O que será que eles nos vão tirar a seguir?…
 
E as conversas de elevador? Não seria bastante desconfortável estar fechado durante alguns segundos com um perfeito desconhecido e não perguntar o que este acha do estado do tempo?
 
E como convidaríamos aquela miúda especial, cujo tamanho perfeito das mamas e a forma ideal do rabo em nada contribuiu para chamar a nossa atenção, para sair connosco, beber um copo, e acordar no dia seguinte com dores nas costas sem se lembrar porquê?
 
E os interrogatórios policiais? Como determinaríamos se o suspeito em questão é inocente ou não? Pelo tom de pele? Quanto mais escuro for, mais culpado é? Não acham que isso seria um pouco racista?
 
Então e os testes e exames escolares? Sem perguntas às quais responder, como nos avaliariam? Pedir-nos-iam apenas que escrevêssemos um texto sobre uma palavra à nossa escolha? Seria isso suficiente? E se eu escrevesse um texto com um enorme esforço e dedicação com a finalidade de criar algo minimamente agradável de ler, engraçado, e original, mas o resultado final fosse tudo menos isso? Estaria a minha nota condenada?
 
Será que sou só eu que estou a pensar demasiado? Mais ninguém se preocupa com estas coisas?
 
E que tal se eu vos disser que sem interrogações, não haveria bolo para ninguém?
Parece não haver nenhuma ligação, não é? Mas serviu para recuperar a vossa atenção que já começava a dispersar após tantos exemplos, não serviu?
 
Depois de todos os argumentos que apresentei, não será lícito considerar as interrogações algo de extrema importância e de um interesse incalculável?
 
 
E para terminar, já repararam que sem interrogações, todo este texto desapareceria?
 
Interrogação?
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